Educador popular adverte para armadilhas neoliberais

Para Oscar Jara, hegemonia neoliberal coloca várias armadilhas no caminho dos educadores. “Precisamos refletir sobre a possibilidade de que estejamos contaminados em nossas práticas diárias por esse modelo mercantilista hegemônico”, advertiu durante debate em Porto Alegre.

Marco Aurélio Weissheimer    30/07/2004

 

Porto Alegre – Oscar Jara é um educador popular com vasta experiência nas dificuldades e êxitos do trabalho educacional com as camadas mais pobres da população, no campo e na cidade. Trabalhou com alfabetizador em zonas camponesas no Peru, na década de 70, um período na história da América Latina. No Peru, na Costa Rica e em outros países, Jara atravessou esse período mantendo sua convicção na capacidade da educação popular formar cidadãos, respeitando sua realidade, desejos e visão de mundo. Ao participar de um debate, no Fórum Mundial de Educação, sobre a Escola Cidadã como contraponto à mercantilização da educação, Jara defendeu a necessidade de transformar a educação e a escola, através de um processo de reinvenção da democracia, de democratização da democracia. Para ele, Porto Alegre é um exemplo da possibilidade de fazer essa mudança, de construir o novo e instaurar um modelo de cidadania de tempo integral.

Para tornar essas propostas em realidade, o educador defendeu a necessidade de criar e disseminar práticas democráticas em todos os terrenos da vida cotidiana. Contra a redução operada pelas políticas neoliberais no sentido da mercantilização de praticamente todas as esferas da vida, Oscar Jará lançou um desafio aos educadores que participavam do debate: é preciso transformar a prática cotidiana nas escolas em um trabalho comprometido com o direito de ter direitos, com o direito de criar direitos. E advertiu para uma série de armadilhas espalhadas por quem queira trilhar esse caminho. Essas armadilhas, segundo ele, são fruto da sofisticação cada vez maior das idéias e práticas daqueles que querem absorver a esfera educacional para o domínio dos mercados. Essa sofisticação, advertiu, faz com que muitos conceitos progressistas sejam incorporados e transmutados em outra direção, diferente daquela normalmente conhecida.

Dois modos de educar para a mudança
Primeira armadilha, segundo Jara: a idéia de educar para a mudança. É possível falar da relação entre educação e mudança pelo menos de dois modos distintos. Um deles é o que diz que é preciso educar para a mudança, pois os tempos são outros, o mundo mudou e os educadores precisam ensinar seus alunos a se adaptar a essa nova realidade. Neste caso, a educação está a serviço de uma adaptação passiva a uma nova realidade. Outro, bem diferente, é aquele que alimenta um olhar crítico sobre a natureza das mudanças em curso e propõe a mudança de direção do que está ocorrendo. Segundo Jara, esse segundo modo é o que se coloca como tarefa para os educadores populares. “A educação pela qual precisamos trabalhar não é a que procura nos adaptar para os novos tempos, mas sim a que propõe a mudança do próprio sentido das mudanças”, defendeu.

A segunda armadilha: pensar a educação como um instrumento. “A educação não deve, absolutamente, ser vista como um instrumento, mas sim como um permanente processo criativo de transformação. Em cada gesto, em cada opção pedagógica, estamos construindo a capacidade de mudar a cada dia”, defendeu. Além disso, observou que, se é verdade que os fins da educação determinam seus meios e métodos, quem quer fazer uma educação realmente libertadora, deve ter uma prática igualmente libertadora. Isso pode parecer óbvio, mas na prática nem sempre é assim, alertou. “Falar em democracia não é só um discurso para enfrentar o neoliberalismo, mas algo que é dirigido a nós mesmos, a nossa prática do dia-a-dia. Precisamos refletir até que ponto não estamos contaminados por esse modelo mercantilista hegemônico que penetrou profundamente na sociedade. Ninguém pode se considerar imune a suas sutilezas e poderes”, observou.

Crítica ética ao neoliberalismo
A educação, acrescentou, não é um instrumento através do qual vamos acumulando saberes para quem sabe um dia fazer alguma coisa com eles. Ao contrário, sustentou, ela é algo que deve ser vista como uma construção diária, com os pés fincados no presente e cujas aplicações também devem se dar no presente. Esse é, segundo ele, o sentido mais profundo da educação popular. “O essencial da educação popular é que ela constrói sujeitos transformadores da história, algo que se dá sempre no presente e que pode ser feito dentro da escola e também fora dela”. A oposição que essa concepção levanta em relação às políticas neoliberais é, em boa medida, de natureza ética, sustentou. “Temos uma crítica ética o neoliberalismo pelo fato de que esse modelo, no campo educacional, não permite desenvolver plenamente as capacidades de cada indivíduo”, assinalou. É no contexto dessa crítica que o educador popular deve situar seu trabalho, enfatizou.

Neste contexto, Vitor Jara apresentou quatro pistas para pensar o que deve ser a formação do que chamou de “pessoa cidadã”. Essas quatro pistas são as seguintes:

1. Considerar a criação de saber como um valor fundamental da experiência humana. Para o neoliberalismo, o saber é uma coisa utilitária, uma ferramenta, quando, na verdade, o saber é um definidor da própria condição humana. A partir dessa concepção de saber, devemos ter claro que o diálogo não é uma técnica, mas sim algo ontológico. Somos humanos na medida em que dialogamos com o outro, na medida em que estamos abertos ao saber que podemos aprender do outro. O diálogo vai construindo sentidos em comum, saberes em comum.

2. A educação é uma companheira para toda a vida, ou seja, ela é permanente. Não temos um tempo determinado para estudar, esse tempo é toda a duração da vida. Por isso, é tão importante preencher as aulas de vida, fazer da educação uma aventura permanente. É por isso também que o que acontece fora da escola deve fazer parte permanentemente do que acontece nas salas de aula.

3. A educação deve desenvolver todas as nossas capacidades transformadoras e não apenas algumas delas. Só assim é possível construir sujeitos plenos, que pensem criticamente, e não apenas sujeitos que dominam uma competência específica, tal como é proposto pela educação funcional.4. A educação deve sistematizar experiências.

Sem esse aprendizado do nosso acúmulo de saberes, não é possível uma apropriação e transformação do futuro. Sem ele, não conhecemos os elementos que nos permitiram fazer determinada coisa, determinada escolha.

O que unifica essas pistas, concluiu Jara, é uma compreensão de que mudar o mundo é uma relação entre a dificuldade e a possibilidade de mudar a história. “É aí que se encontra o sentido da educação. A possibilidade da mudança está contida em nossas práticas cotidianas, na capacidade de olharmos criticamente para essas práticas”, resumiu.

 

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