J. E. Romão
Há muito que o Instituto Paulo Freire (IPF) vem perseguindo a idéia de uma “Educação Cidadã” e, neste percurso, sofreu ataques à direita e à esquerda. Desta última, as baterias voltavam-se para um termo cujo significado ou conceito a que remetia inscrevia-se no universo da visão de mundo das elites e, mais recentemente, na história ocidental, no sistema simbólico da burguesia.
De fato, a cidadania quase sempre foi uma prerrogativa das elites e era usada para excluir a maioria. Não foi este o caso das chamadas civilizações clássicas (Grécia e Roma), em que os cidadãos gozavam de todos os direitos, enquanto os não-cidadãos tinham de se contentar com submissão às decisões dos primeiros? Ora, se Platão considerava que a Política é a ciência e a arte supremas e que, portanto, o ser humano somente realiza sua humanidade participante ativamente delas, os não-cidadão, proibidos, no contexto grego antigo, de participarem do processo decisório, estavam impedidos de se realizarem em sua humanidade. Quando Aristóteles afirmava que o “homem é um ser, por natureza político”, no fundo, estava reiterando que os seres vivos, para serem humanos, têm de ser cidadãos, isto é, têm de participar do processo político para atualizarem (no sentido aristotélico) suas potencialidades humanas. Lido em sentido contrário, diferentemente da interpretação anacrônica que se faz, geralmente, dessa sua afirmação, Aristóteles não estava dizendo que todos os seres humanos são políticos; estava afirmando que apenas os políticos eram humanos, excluindo desse universo os metecos (livre não-cidadãos) e os escravos. Também na modernidade, a citoyenneté foi uma prerrogativa conquistada pela burguesia revolucionária e, embora generosamente se estendesse a um número bem mais amplo de pessoas, não tornou co-extensiva a este mesmo universo a igualdade econômica, política, social e cultural, inaugurando uma espécie de tratamento igual formal aos desiguais.
Portanto, parece que o termo e seu campo sintático-semântico está viciado de conotações elitistas e excludentes. Então, por que a insistência do IPF em sua utilização, se podia lançar mão de outros termos mais próximos da tradição das lutas populares? Duas razões, entre outras, podem ser apontadas: primeiramente, a cidadania inscreve-se como utopia no sistema simbólico burguês, no momento em que a burguesia identificava-se com os oprimidos e tentava desalojar do espaço hegemônico as elites excludentes (nobreza e alto clero); em segundo lugar, estrategicamente, as elites sempre se apropriaram das bandeiras populares de maior appeal político, descaracterizando-as e dando-lhe uma nova direção, nos sentido de seus próprios interesses discriminatórios e excludentes. Não está na hora de os grupos que se colocam em posições contra-hegemônicas usarem da mesma estratégia, já que ela tem se mostrado eficientíssima – ao ponto de fazerem os detentores originais de determinadas bandeiras se sentirem ideologicamente órfãos e de mãos vazias ?
No II Fórum Mundial de Educação, realizado em 2003, parece que, finalmente, esta luta que o IPF vinha mantendo isoladamente no campo das esquerdas brasileiras foi compreendida, transformando-se num dos eixos da Carta de Porto Alegre, que agora se torna um dos parâmetros no Fórum Mundial de Educação de São Paulo, em 2004.